Cultura
Mais que um clube, um espaço de resistência
O livro Clube 24 de Agosto - 100 Anos de resistência de um clube social negro na fronteira Brasil-Uruguai resgata e valoriza a história da entidade de Jaguarão
Paulo Rossi -
Os bailes de domingo já são tradicionais. Reúnem público de todas as idades e lotam o salão. Mas ao pisar no Clube 24 de Agosto, em Jaguarão, os visitantes ocupam ambiente não só de lazer. De festa. O primeiro clube negro a se tornar Patrimônio Histórico do Rio Grande do Sul é espaço de resistência. Há exatamente um século. A liberdade precisava ser reafirmada, em luta constante contra a perversidade do racismo.
Acesso restrito ao ensino, à moradia e à alimentação. Condições duras de trabalho. A comunidade jaguarense, assim como ocorria em diferentes cidades do Estado e do país - e ainda ocorre -, continuava a reproduzir preconceitos e naturalizava as desigualdades. Foi nesse contexto que o 24 de Agosto abriu as portas e tornou-se referência como projeto político de liberdade e de cidadania.
Oficinas de letramento, criação de biblioteca, qualificação para o trabalho. Século 20. Era preciso fincar posição e lutar para ter a identidade respeitada. Hoje, século 21, a entidade mantém o compromisso de valorização da cultura negra, realiza rodas de conversa com a população e conta com parceria da Unipampa, que há oito anos se aproximou do Clube e atualmente envolve-se, inclusive, no processo de higienização de documentos e de fotos. Virou campo de estágio aos acadêmicos de História.
Tudo para preservar essa longa caminhada, agora transformada no livro Clube 24 de Agosto - 100 Anos de resistência de um clube social negro na fronteira Brasil-Uruguai.
Mais do que um clube, um quilombo
As palavras são da yalorixá Nice de Xangô: Este espaço é mais do que um clube. É um quilombo, onde a gente se encontra todos, para manter viva, além da memória dos nossos ancestrais e daqueles que começaram, que foram os fundadores do clube, aqueles que lutaram para manter a nossa cultura afro aí viva!
E para manter a sede, o processo também foi de luta. Uma dívida com o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) - de R$ 2.801,61 -, em 1998, foi parar na Justiça e, em 2007, o prédio foi a leilão. Chegou a ser arrematado por R$ 44 mil; pouco mais da metade do valor em que o imóvel havia sido avaliado.
Iniciava-se, ali, uma longa mobilização. Desde o abraço ao Clube em 2011 até o anúncio de tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae), em 2012. Mas ainda não era o suficiente para evitar a entrega formal do prédio, que permanecia em discussão na Justiça. Engajamento da Unipampa, apoio da prefeitura e intervenção do Ministério Público (MP) foram fundamentais para a penhora ser, oficialmente, anulada em 2016.
Reconhecia-se: não bastaria apenas preservar as características originais da edificação de "pedra e cal". Era preciso mais. Era fundamental preservar o uso do Clube, sob pena de afetar a dimensão imaterial como patrimônio cultural afro-brasileiro.
Esforço coletivo, desde o princípio
A entrada nos clubes Jaguarense, Harmonia e Caixeiral estava vetada. Em dia de baile, não podia sequer passar na calçada. Foi quando um grupo de famílias, articuladas com as práticas da Sociedade Operária Jaguarense, decidiu incorporar-se à ideia dos companheiros Malaquias Oliveira e Theodoro Rodrigues.
Estava fundado o 24 de Agosto, que ganharia como nome a data da reunião em que a criação deste espaço de luta foi cogitada.
O Clube chegou a funcionar junto à Sociedade Operária, à beira do rio Jaguarão, na rua 20 de Setembro, 332. No final da década de 1950, teve início um movimento pela sede própria. Uma década depois, no fim dos anos 1960, foram adquiridos dois terrenos, na esquina das ruas General Marques e Augusto Leivas. Iniciaria, então, mais uma etapa de mobilizações. Desta vez, pela construção do prédio. E foi, claro, o que ocorreu. Em meados de 1970, após esmero coletivo, a entidade abria as portas onde funciona até os dias de hoje.
Saiba mais
Protagonismo
O 24 de Agosto não foi apenas o primeiro clube social negro de Jaguarão. A entidade também se destaca como protagonista dos primeiros bailes de integração entre negros e brancos, no final da década de 1970, em parceria com o Caixeiral.
O racismo, entretanto, não desaparecia - contam o presidente Neir Madruga Crespo e o tesoureiro Irani Junio Ferreira. Não raro, o preconceito destilava em "sutilezas". Ao terem a corte de Carnaval recebida, ao som rodavam músicas como Nega do cabelo duro, dos compositores David Nasser e Rubens Soares. "Já entre 1996 e 1997, quando chegamos no Caixeiral, nos receberam com Xô Satanás, xô Satanás, talvez, sem nem se dar conta", lembra o presidente. Estava, mais uma vez, naturalizado o racismo.
Preservação da memória
Várias iniciativas têm sido adotadas, nos últimos anos, para ressaltar o movimento de resistência em Jaguarão. E o processo vai além de criar banco de história oral e promover a higienização de fotos e de documentos do 24. O compromisso é maior. O Clube tem a Salvaguarda do acervo do Suburbanos, fundado em 1966. A intenção é de, no futuro, criar espaço para exposições permanentes - conta o professor da Unipampa, Caiuá Cardoso Al-Alam. Um ambiente que possa manter viva a memória e valorizar relatos, como os que trazem a alegria e a força dos blocos de Carnaval União da Classe e Bataclã; criteriosos na hora de decidir se estavam ou não em condições de sair às ruas.
"Na verdade, eles estavam lutando contra o estereótipo de 'A gente, de novo, não quer ser visto como qualquer coisa'", explica o doutor em História. Ao caírem na folia e fazerem bonito, os blocos também mandavam um recado: queremos ser valorizados.
Sob os efeitos da escravidão
Em Jaguarão, milhares de moradores sofreram o impacto da liberdade precária. E é fácil de entender o porquê. Em 1859, a população era de 12.999 pessoas: 7.668 livres, 275 libertos e 5.056 escravizados, que correspondiam a 38,89% - apontam dados de relatórios dos presidentes da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul.
Era segunda maior população de escravizados da Província. Ficava atrás apenas de Porto Alegre e à frente de regiões escravistas, como Pelotas - importante núcleo charqueador - e a cidade portuária de Rio Grande. É mais um dos resgates apresentados no livro.
Valorize!
►Clube 24 de Agosto - 100 Anos de resistência de um clube social negro na fronteira Brasil-Uruguai
►18 autores
►207 páginas
►3 organizadores: Caiuá Cardoso Al-Alam, Giane Vargas Escobar e Sara Teixeira Munaretto
►Valor: R$ 40,00
►Toda a renda é revertida ao Clube
►Onde adquirir: no próprio 24 de Agosto e, em Pelotas, no Sebo Icária - rua Tiradentes 2.579
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